23/06/2014 13h35

Foram colhidos os depoimentos do jornalista e professor Julio Cesar Gonçalves, do advogado Jeremias de Camargo e do cronista esportivo Antonio Antonelli

 

Três novos depoimentos foram colhidos pela Comissão Municipal da Verdade “Alexandre Vannucchi Leme” que apura casos de violação de direitos humanos ocorridos durante a ditadura militar. O jornalista e professor universitário Julio Cesar Gonçalves, o advogado Jeremias de Camargo e o cronista esportivo Antonio Antonelli prestaram depoimento à comissão no plenário da Câmara Municipal na manhã desta segunda-feira, 23. O professor Daniel Lopes, um dos incentivadores da criação da comissão também participou dos trabalhos, além de representantes de vários segmentos sociais.

 

O jornalista Julio Cesar Gonçalves, que é professor da Universidade de Sorocaba (Uniso), contou que não foi preso nem torturado pelo regime militar, mas participou da resistência à ditadura militar, com pequenos gestos de protestos, como desfilar com as mãos para trás na escola e não cantar o Hino Nacional. Posteriormente, como jornalista, conta ter vivenciado episódios de censura, como a proibição de escrever o nome do partido MDB (Movimento Democrático Brasileiro), antecessor do atual PMDB. Ele disse que chegou a ser perseguido até por pregar cartazes do então candidato a senador Fernando Henrique Cardoso, que disputou e venceu o pleito pelo PMDB em 1978.

 

Segundo Julio Cesar Gonçalves, Sorocaba, na década de 60, era um centro de efervescência da esquerda, mas, com a eclosão do regime militar, a cidade viveu um retrocesso e, durante os anos 70, foi tomada por “reacionários”. Conta que chegou a enterrar um livro de Marx no quintal de sua casa. “Montamos o primeiro e único jornal alternativo, Sorocaba Urgente, que durou quatro meses, mas foi um catalisador da resistência na cidade”, contou o professor, lembrando que o mesmo grupo que fundou esse jornal participou da “Noite do Beijo”, que ocorreu em fevereiro de 1981, em protesto contra a decisão de um juiz que proibiu o beijo em locais públicos em Sorocaba.

 

Paraquedista na luta – “Vocês não imaginam o que foi a época do militarismo no Brasil. Cantei o Hino Nacional aqui, mas na época eu tinha raiva desse hino”, afirmou Jeremias de Camargo, que pertenceu à Ação Libertadora Nacional (ALN), entidade liderada por Carlos Marighela. O depoente, filho de um caminhoneiro, morava no bairro do Cerrado, na General Carneiro, e estudou em várias escolas públicas da cidade. É de uma família de adventistas. Foi para o Rio de Janeiro, onde ingressou no grupo de paraquedistas do Exército, quando se deu sua cooptação para a ALN (Ação Libertadora Nacional), por meio de um capitão chamado Calabar, que integrava o grupo de paraquedistas.

 

Jeremias de Camargo, que era chamado de “Rocha” pelos companheiros, disse ter sofrido diversos tipos de tortura, como o “banho da minhoca” no Tietê, que consistia em mergulhar o torturado no rio, amarado em uma vara. Disse não ter conhecido pessoalmente Marighela nem outros líderes da ALN. Não chegou a ser condenado, mas saiu do Brasil e ficou 17 anos exilado, usando vários nomes, quando passou por países como Paraguai, Cuba e Estados Unidos. Citou nomes de torturadores, como “Capitão Jaime” e “Maurício”, que seria da Polícia Civil, mas disse não ter visto o rosto da maioria, pois era torturado com um capuz.

 

Respondendo a uma indagação do vereador Anselmo Neto (PP), relator da comissão, Jeremias de Camargo disse não ver relação entre os Black Blocs atuais e a sua geração. “Os Blacks Blocs são marginais. O grupo do qual participei não praticava ações violentas”, afirmou. Confrontado, pelo escritor Antonio Pedroso Júnior, com o fato de que a ALN era uma das mais importantes organizações da luta armada, tendo realizado sequestros bem-sucedidos, como o do embaixador estadunidense Charles Burke Elbrick, em 1969, juntamente com o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro), Jeremias de Camargo disse que participava da “periferia” da ALN, cuidando de cooptar novos adeptos para a organização e não tinha conhecimento dessas ações.

 

Atentado frustrado – O cronista esportivo Antonio Antonelli contou que foi preso várias vezes, ficando alguns dias encarcerado e que sua prisão mais violenta, quando foi torturado, se deu em 1974, quando ficou preso no Doi-Codi do Exército, em São Paulo, na Operação Bandeirante (Oban). Contou que os torturadores colocavam o som alto, tocando “Guita”, de Raul Seixas, para encobrir os gritos dos torturados. Levou choques elétricos e foi posto no pau-de-arara, numa tentativa dos agentes da repressão de descobrirem suas ligações com Marighela e outros da cúpula da ALN.

 

Antonelli contou que sua militância política se iniciou em São Paulo e que conheceu a militante da ALN Ana Rosa Kucinski, uma professora de Química, que desapareceu juntamente com o marido em abril de 1974. “Em São Paulo, conheci dois sorocabanos: Jeremias de Camargo e Benedito Soares. As nossas reuniões eram para pregar panfletos em postes e outras ações do gênero. Eu era enfermeiro e o Jeremias era paraquedista no Rio de Janeiro”, contou Antonelli, que disse ter arregimentado camponeses para a ALN em várias cidades do interior paulista.

 

Em que pese ter dito que não participava das ações armadas da ALN, Antonio Antonelli acabou confessando que participou de um atentado contra o quartel do Ibirapuera, em São Paulo, mas a granada que ele e o companheiro iriam lançar acabou caindo com um solavanco do veículo em que estavam, um Fusca, e a ação fracassou. Por sua vez, Jeremias Camargo complementou a informação, afirmando que era seu o Fusca usado no atentado frustrado. Todavia, insistiu que não tinha conhecimento das ações armadas da ALN e, em tom bem-humorado, disse que se sentia “traído” por saber só agora que Antonelli cooptava pessoas para a luta armada.

 

Nome inédito – O professor Daniel Lopes quis saber mais informações sobre Benedito Soares, que, segundo ele, foi citado pela primeira vez nos depoimentos da Comissão da Verdade. Antonelli não soube dar mais detalhes sobre o preso que viu ser torturado e que, segundo ele, já está morto e a família não quis tratar do assunto. Mas Jeremias Camargo complementou a informação, afirmando que Benedito Soares era um policial militar, que levou um tiro no peito. Oficialmente, o tiro foi apresentado como acidental e de sua própria arma, mas, na verdade, teria sido obra do serviço reservado da PM. Segundo Camargo, Benedito Soares sobreviveu, mas não quis falar sobre o assunto.

 

Antonelli disse ter sido torturado em São Paulo, com queimaduras de cigarro, por um homem chamado Baltazar, que seria o jogador Oswaldo Silva, mais conhecido como “Baltazar, o Cabecinha de Ouro”, do Corinthians, que, por sinal, tinha sido um ídolo de sua infância. Essa informação teria sido repassada a ele por um agente, que lhe perguntou se não estava reconhecendo no torturador, o ex-jogador de futebol, que morreu em 1997 aos 71 anos. O escritor Antônio Pedroso Júnior quis saber se Antonelli viu o rosto do jogador. Ele respondeu que não, que o viu de costas, mas que realmente se parecia com Baltazar.

 

Histórico dos trabalhos – A Comissão da Verdade está na fase de coleta de depoimentos, que serão transcritos e enviados à Comissão Nacional da Verdade no fim deste ano. Os resultados também estarão disponíveis para instituições interessadas na história da região durante o regime militar.

 

Já foram ouvidos pela comissão nas duas primeiras oitivas o professor Aldo Vannucchi, tio de Alexandre Vannucchi Leme; o ex-militante Osvaldo Noce; o ex-líder sindical Francisco Gomes, Chico Gomes; jornalista e historiador Geraldo Bonadio e do professor de história Miguel Trujillo.

 

A agenda de trabalho da Comissão da Verdade é desenvolvida conforme a disponibilidade de cada personagem, que é convidado a depor na Câmara. A comissão é  presidida pelo vereador Izídio de Brito (PT) e tem como relator Anselmo Neto (PP), além dos membros Saulo do Afro Arts (PRP) e Neusa Maldonado (PSDB).